DossiêNº 69

Como o Fundo Monetário Internacional está esmagando o Paquistão

Para compreender a contração sem precedentes da economia do Paquistão, que faz com que os pobres se tornem significativamente mais pobres, é urgentemente necessário analisar a forma como as políticas do FMI minam sua independência econômica.

 

Este dossiê foi produzido em colaboração com o Research and Publications Centre (Lahore, Paquistão) e escrito por Taimur Rahman, professor associado de Ciências Políticas da Lahore University of Management Sciences (LUMS), vocalista da banda paquistanesa Laal e secretário-geral do Mazdoor Kissan Party [Partido dos Trabalhadores e Camponeses] e da Left Democratic Front [Frente Democrática de Esquerda].

As fotografias que aparecem neste dossiê são de Ali Abbas (“Nad E Ali”), artista visual residente em Lahore, Paquistão, cuja obra explora temas como a alienação, o pertencimento e os espaços intermediários que existem em todas as culturas. As fotografias pertencem à série  “Hauntology of Lahore” [Hautologia de Lahore], tomando emprestado o termo do filósofo Jacques Derrida. Nas palavras de Abbas, “dentro da própria paisagem de Lahore, entre as suas ruas movimentadas, estruturas antigas e comunidades vibrantes, existe um reservatório de futuros inexplorados e de potencial não realizado”. Este dossiê lança luz sobre esse reservatório de futuros inexplorados e potencial não realizado num sentido econômico, político e cultural, não só do Paquistão, mas dos povos oprimidos do Terceiro Mundo de forma mais ampla.

O Paquistão apareceu nas manchetes internacionais várias vezes no último ano, quase sempre pelos motivos errados, infelizmente. Embora o país tenha sido associado ao extremismo e ao terrorismo por mais de duas décadas, mais recentemente o Paquistão se tornou conhecido por desastres naturais e revoltas políticas. Enchentes catastróficas desalojaram dezenas de milhões de pessoas, enquanto uma polêmica moção de censura em março de 2022 forçou o primeiro-ministro Imran Khan e seu partido, o Pakistan Tehreek-e-Insaf (Movimento Paquistanês pela Justiça – MPJ), a renunciar (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2022).

Entre as questões que merecem séria atenção está a enorme e sem precedentes contração da economia do país. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projetou que a economia do Paquistão crescerá apenas 0,5% em 2023 e que o povo experimentará taxas de inflação superiores a 27% (FMI, 2023a). Dados do próprio governo indicam que a economia paquistanesa cresceu apenas cerca de 0,29% em 2023 (Governo do Paquistão, 2023). Como a população está aumentando a uma taxa de 1,8%, superando a expansão econômica nacional, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita deve diminuir (Data Commons, 2023). Em termos simples, o paquistanês médio ficará significativamente mais pobre nos próximos anos.

De acordo com o Banco Mundial, entre 8,4 e 9,1 milhões de pessoas no Paquistão provavelmente passaram a viver abaixo da linha de pobreza em 2022 devido aos efeitos combinados da inflação e da destruição das colheitas pelas enchentes que atingiram um terço das terras agrícolas do Paquistão (Amadio et. al., 2023). Estima-se que os danos e as perdas econômicas das enchentes ultrapassem 30 bilhões de dólares, com um mínimo de 16 bilhões de dólares necessários para a reconstrução (Banco Mundial, 2022).

 

Taxa de crescimento do PIB do Paquistão, 1961-2023.

Fonte: Macrotrends (2023a).

 

Antes das enchentes, a pandemia de Covid-19 já havia causado interrupções e contrações em quase todos os setores da economia. As taxas de crescimento do PIB caíram de 6,15% em 2018 para -1,27% em 2020. O declínio foi impulsionado por uma forte contração no setor de serviços, especialmente no comércio atacadista e varejista, bem como nos setores de transporte e comunicações. A pandemia aumentou o desemprego e a pobreza, pois muitas empresas foram forçadas a fechar ou a reduzir suas operações devido a bloqueios e medidas de isolamento social (Macrotrends, 2023a). A pandemia exacerbou os desequilíbrios fiscais e externos do Paquistão, uma vez que as receitas, as exportações e remessas estrangeiras diminuíram e os gastos com saúde e assistência social aumentaram. Devido às interrupções na cadeia de suprimentos, às poupanças e às compras motivadas pelo pânico, os preços dos alimentos subiram e as taxas de inflação de dois dígitos se tornaram a norma em 2021.

Embora o Paquistão tenha registrado uma impressionante recuperação pós-Covid-19, ela foi extremamente curta. Em 2023, a economia enfrentou dificuldades com termos de troca desvantajosos. À medida que a rúpia paquistanesa cai em relação ao dólar estadunidense, a conta das importações do Paquistão aumenta, causando uma forte inflação pressionada pelos custos de produção, como aumento de salários e dos preços de matérias-primas. O aumento das importações resulta em custos mais altos de eletricidade, transporte e até mesmo de matérias-primas, o que significa que as indústrias locais se tornam menos competitivas no mercado internacional. Dessa forma, o valor das importações do país excede o valor de suas exportações, levando a um déficit crescente na conta corrente. O ciclo inteiro se repete em um looping temporal, tal como no filme Feitiço do tempo (1993), mas sem um final feliz.

O atual governo de coalizão do Movimento Democrático do Paquistão (MDP), que chegou ao poder em abril de 2022 após uma moção de censura aprovada por um triz, está passando por enormes dificuldades econômicas e políticas. O governo adiou as eleições provinciais, enfrentando as determinações da Suprema Corte do Paquistão de que tais decisões eram inconstitucionais. Enquanto isso, as filas de pão aumentam, e pessoas desesperadamente pobres foram pisoteadas em tumultos em centros de distribuição de farinha (Ahmad e Bukhari, 2023).

Em suma, as coisas estão um caos. Por que tudo isso está acontecendo? Alguns alegam que Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, são os culpados pelos problemas do Paquistão.1 Embora seja difícil acreditar, de acordo com essa linha de pensamento, a guerra na Ucrânia e os empréstimos chineses são responsáveis pelos problemas de endividamento do país. Como disse o conselheiro do Departamento de Estado dos EUA, Derek Chollet, durante uma visita a Islamabad em fevereiro de 2023, “temos sido muito claros quanto às nossas preocupações, não apenas aqui no Paquistão, mas em outras partes do mundo, sobre a dívida com a China” (Peshimam, 2023).

Essa linha de pensamento é falha em três aspectos chave. Primeiro, o déficit comercial da balança do Paquistão, que faz com que o governo precise pedir empréstimos, é muito anterior à guerra na Ucrânia. Segundo, embora a China possua cerca de 30% da dívida externa do Paquistão, a maior parte dessa dívida está na forma de empréstimos para projetos ligados ao Corredor Econômico China-Paquistão, parte da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR). Em outras palavras, essa dívida vai diretamente para melhorar a infraestrutura do país e as perspectivas de desenvolvimento econômico (Mangi, 2023). Mais importante ainda, a China não impôs nenhum modelo ou política econômica específica para o Paquistão. Esse é um forte contraste com o longo histórico paquistanês de obediência às recomendações do FMI: em seus 76 anos de história desde sua independência, o Paquistão firmou 23 acordos com o Fundo, ou seja, em média, um acordo a cada três anos. Além disso, as atuais medidas de austeridade que fizeram com que os preços da eletricidade, do combustível e do gás disparassem foram recomendadas pelo FMI (2023b).

Em 1995, o Paquistão entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC), e as taxas médias de importação do país diminuíram de 45% para 8,6% (Macrotrends, 2023b). Nos últimos 20 anos, as importações estrangeiras têm inundado o mercado local, e a nova economia de consumo que surgiu a partir de 2003 viu uma balança comercial em declínio acentuado (Trading Economics, 2023). Os problemas da balança de pagamentos do Paquistão têm sido gerenciados há muito tempo pela principal “exportação” do país – seu valor geoestratégico para Washington. Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em 2001, precisavam do apoio do Paquistão e, por isso, retiraram suas sanções econômicas contra o país e forneceram ajuda econômica e militar. No mesmo período, devido à importância estratégica do Paquistão na “Guerra ao Terror”, o Clube de Paris renegociou 12,5 bilhões de dólares do total de 13,5 bilhões da dívida que o Paquistão tinha com o grupo (Clube de Paris, 2001). Além disso, também fez concessões comerciais ao país.2 Era quase como se o Paquistão tivesse recebido uma folha de papel em branco e pudesse começar tudo de novo. Mas isso não duraria muito.

A partir de 2004, as importações do Paquistão começaram a superar suas exportações (Haider, 2019). Até certo ponto, isso foi atenuado pelas remessas de trabalhadores do exterior. No entanto, entre 2015 e 2018, os déficits em conta corrente do Paquistão dispararam de 2,8 bilhões para 18 bilhões de dólares (Siddiqui, 2018). Isso foi anterior à guerra da Ucrânia – o pretexto usado para desviar a atenção dos fatos e, em vez disso, contribuir para a Nova Guerra Fria contra a China e a Rússia – e teve pouco a ver com o CPEC. Em vez disso, esse déficit foi causado pelo fato de o Paquistão não ser mais competitivo no mercado internacional e ter continuado a importar bens e serviços a uma taxa que simplesmente não pode arcar.

O Paquistão tem dificuldades para concorrer no mercado internacional não porque os custos de mão de obra sejam muito altos, mas porque, apesar de receber benefícios de promoção de exportação, os exportadores têxteis não conseguiram aumentar a produtividade da mão de obra nas últimas quatro décadas.3 Não houve nenhum esforço sério, seja no setor público ou privado, para melhorar a infraestrutura tecnológica do país. Como resultado, ao longo do tempo, países como Bangladesh, China e Vietnã ultrapassaram o Paquistão em termos de produtividade têxtil e exportações.

Ao mesmo tempo, o apetite voraz por produtos de luxo importados tornou-se tão grande que o déficit comercial do Paquistão agora é de 42 bilhões de dólares, dos quais cerca de 30 bilhões são pagos por remessas de trabalhadores (Macrotrends, 2023c; Puri-Mirza, 2023). A economia do país está se transformando, indo de uma economia exportadora de algodão e produtos relacionados ao algodão durante a Revolução Verde nas décadas de 1960 e 1970, para um país que está cada vez mais exportando sua força de trabalho e mão de obra.


 

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Uma economia dependente de importações

Quando a onda neoliberal global atingiu o Paquistão na década de 1990, o setor público de energia não conseguiu acompanhar o ritmo da crescente demanda. O governo não podia privatizar esse enorme monopólio natural, então, em vez disso, criou a política de Produtores Independentes de Energia (Independent Power Producers – IPP, na sigla em inglês) de 1994, que convidou investidores estrangeiros a criar usinas de energia. A emissão de contratos para os IPPs foi um componente fundamental do programa de reforma do setor energético do Paquistão em meados da década de 1990, com o objetivo de atrair investimentos privados e reduzir a dependência do país das empresas energéticas do setor público. Atualmente, quase metade da energia do Paquistão é produzida por esses produtores privados de energia, os IPPs.

De acordo com esse arranjo, o governo oferece contratos aos IPPs que efetivamente garantem a eles lucros em dólares estadunidenses. Como as taxas de entrada de combustível e de saída de eletricidade são predeterminadas pelo contrato em dólares, quando o preço do dólar sobe, isso quase não afeta a margem de lucro dos IPPs, mas aumenta os custos para o governo. Os IPPs negociaram taxas de modo que, quando as usinas de energia estiverem prontas para produzir energia, o governo deverá pagar às empresas privadas uma determinada quantia em dinheiro, mesmo que o governo não compre energia delas. Em outras palavras, o governo fica com o risco de mercado e os IPPs têm a garantia de um retorno adequado.

O acordo com esses investidores também permitiu que os IPPs tivessem total liberdade para escolher como produziriam eletricidade. Eles optaram por fazer isso usando óleo combustível, gás natural líquido e carvão importado, levando o país a deixar de produzir eletricidade por meio de represas para queimar combustíveis fósseis. Isso não é apenas terrível para o meio ambiente, mas o custo unitário de produção de eletricidade a partir desses combustíveis é quase oito vezes maior do que a eletricidade produzida em hidrelétricas (Banco do Estado do Paquistão, 2012; Kiani, 2023). Como o Paquistão não produz nenhuma quantidade significativa de petróleo, isso também resultou em um aumento dos gastos em importação de petróleo. Como resultado dessa dinâmica, cerca de um quarto das importações do Paquistão são de petróleo e gás.

Além disso, as empresas privatizadas de distribuição de energia dependem principalmente de subsídios governamentais para continuar funcionando (Kiani, 2012). Essa política energética é um dos principais motivos da crise cíclica da dívida do Paquistão. Quando o governo não consegue pagar os IPPs, o país mergulha repentinamente na escuridão. Esses frequentes cortes de energia destruíram vários setores, especialmente o crescente setor de teares elétricos em Faisalabad.

Devido a essas questões estruturais, quando o preço do petróleo aumenta ou quando o dólar dispara em relação à rúpia paquistanesa, as importações de petróleo ficam mais caras (Ebrahim, 2021). Consequentemente, os custos de transporte e eletricidade aumentam, os exportadores tornam-se cada vez menos competitivos e o governo entra em déficit, pois paga a conta dos IPPs à medida que a demanda por eletricidade diminui. De fato, as instituições estatais que sofrem as maiores perdas são as empresas de distribuição que compram eletricidade dos IPPs e a fornecem para suas respectivas regiões.

Em teoria, o aumento dos preços em dólares deveria tornar o Paquistão, um país com uma moeda mais fraca, mais competitivo no mercado de exportação. As importações devem se tornar mais caras, e as exportações, mais baratas. Entretanto, isso não se aplica em uma economia dependente de importações. Como a produção de mercadorias de exportação está vinculada às importações, o aumento dos preços do dólar não facilita a restauração da balança comercial. As indústrias do Paquistão não podem exportar bens ou serviços produzidos localmente sem antes importar os insumos ou materiais necessários. Se um país depende muito das importações para produzir suas exportações, o custo de produção aumenta quando o custo das importações aumenta e o valor de sua moeda nacional cai em relação às moedas de seus parceiros comerciais. Isso pode levar a custos de produção mais altos e, em última análise, reduzir a competitividade das exportações do país.

 

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Por que o Paquistão não consegue aumentar suas exportações?

Não é fácil aumentar as exportações no curto prazo. A falta de investimentos públicos e privados no setor de manufatura do Paquistão resultou em tecnologia e infraestrutura ultrapassadas, dificultando a concorrência dos fabricantes locais com as empresas estrangeiras. As condições impostas pelo FMI reduziram ainda mais o investimento que o Paquistão tanto precisa para melhorar sua infraestrutura e acelerar a industrialização.

Outro grande obstáculo ao aumento das exportações é que o alto preço do combustível, por sua vez, aumenta o custo do transporte e de outras logísticas necessárias para fazer negócios. Esses obstáculos impediram que os fabricantes locais operassem de forma lucrativa, levando ao fechamento de muitas fábricas e a um declínio na produção industrial. As condições estabelecidas pelos empréstimos de curto prazo do FMI consolidam ainda mais essa realidade.

Para aumentar as exportações, é necessário formar um número maior de trabalhadores, atualizar as tecnologias e aumentar o investimento na fabricação de mercadorias de exportação. Parece impossível que o Paquistão atinja todas essas metas sob um governo que está apertando o cinto do país com uma agenda de austeridade imposta pelo FMI, que exige que o governo liberalize o comércio internacional e se abstenha de usar controles estatais para suprimir o preço do dólar. Isso, em parte, é o motivo pelo qual as autoridades paquistanesas, incluindo o Ministro das Finanças Ishaq Dar, estão constantemente tentando diminuir o preço do dólar.

 

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Privatização do setor público imposta pelo FMI

O FMI tem pressionado o Paquistão a privatizar as empresas estatais desde pelo menos 1991. Apesar de ter privatizado 172 empresas públicas entre 1991 e 2015, gerando 6,5 bilhões de dólares, o país não conseguiu resolver seu persistente déficit orçamentário nem a questão do crescimento de longo prazo (Governo do Paquistão, 2023). Atualmente, há 85 empresas estatais remanescentes, que operam em sete setores: energia; petróleo e gás; infraestrutura, transporte e comunicação; manufatura, mineração e engenharia; finanças; desenvolvimento e gestão de propriedades industriais; e atacado, varejo e marketing (Governo do Paquistão, 2014). Dois terços, ou seja, 51 dessas empresas estatais são lucrativas. Cerca de 80-90% das perdas do setor público são provenientes de apenas nove empresas: Pakistan Railways, Pakistan International Airlines, Pakistan Steel Mills Corporation, Zarai Taraqiati Bank Limited e cinco empresas de distribuição de eletricidade (Governo do Paquistão, 2019a). Em outras palavras, o dispendioso setor de energia é o principal motivo do enorme déficit orçamentário do Paquistão, e suas perdas estão diretamente relacionadas à decisão de privatizar a produção de energia (Governo do Paquistão, 2019b).

A Política de Energia Privada de 1994 tinha o objetivo de resolver rapidamente o problema de redução do suprimento de energia. Ela teve o apoio total do Banco Mundial e foi elogiada pelo então Secretário de Energia dos EUA, Hazel R. O’Leary, como “a melhor política energética do mundo” (Rahman, 2023). Com esse apoio inequívoco das instituições capitalistas, o governo paquistanês adotou a política com rapidez e entusiasmo. No entanto, embora a política de 1994 tenha atraído 5 bilhões de dólares em novos investimentos no setor de energia e expandido a capacidade de geração de energia do país em 4.500 megawatts, ela teve consequências desastrosas de longo prazo para a energia e, consequentemente, para toda a economia (Ali e Beg, 2007).

Primeiro, o aumento do custo da eletricidade resultou na redução das taxas de lucro em todos os setores industriais. Em segundo lugar, o lucro sobre o patrimônio líquido indexado ao dólar garantido aos IPPs transferiu todo o ônus do risco de investimento para o Estado paquistanês. As crescentes taxas de combustível decorrentes do preço do petróleo ou das flutuações do dólar e os encargos de capacidade4 tiveram que ser transferidas ao contribuinte paquistanês. Terceiro, como mostra o Relatório do Subcomitê do Comitê Permanente de Energia do Senado do Paquistão (2020), em várias ocasiões os IPPs fizeram uso de contabilidade criativa para violar as regras da National Electric Power Regulatory Authority (Nepra, na sigla em inglês) e colher lucros monopolistas muito acima do lucro de 15% sobre o patrimônio líquido permitido pelas regulamentações, o que sobrecarrega as finanças públicas (Senado do Paquistão, 2019). Quarto, os preços mais altos da eletricidade tornaram o outrora lucrativo setor de exportação têxtil do país menos competitivo no mercado internacional. Recentemente, a All-Pakistan Textile Mills Association [Associação de Fábricas Têxteis de Todo Paquistão] argumentou que as altas contas de eletricidade ameaçam encerrar completamente as exportações de produtos têxteis fabricados em Punjab. Em quinto lugar, a incapacidade do governo de efetuar pagamentos dos encargos de capacidade aos IPPs dentro do prazo significa que o país passa por frequentes e debilitantes interrupções de energia. As empresas do Paquistão criaram fontes alternativas privadas de energia para manter suas fábricas em funcionamento. Por fim, os contratos com os IPPs pioraram o déficit da balança comercial do Paquistão, forçando o país a retornar ao FMI para obter empréstimos de curto prazo extremamente necessários. Por fim, a privatização da energia exacerbou significativamente os déficits orçamentários e comerciais do Paquistão.

Qualquer governo que chegue ao poder no Paquistão terá que se esforçar imediatamente para apagar os incêndios relacionados aos déficits em conta corrente e à queda das reservas cambiais. À medida que essas reservas caem, o medo da inadimplência leva os líderes a buscar financiamento externo. Entretanto, sem a aprovação do FMI, outras instituições financeiras internacionais (IFIs) não estão dispostas a conceder crédito ao país. Como resultado, esse medo de inadimplência levou os representantes eleitos aos braços do FMI para implorar por empréstimos.

Meses depois que o ex-primeiro-ministro Shehbaz Sharif iniciou seu mandato em abril de 2022, o governo negociou um Acordo Stand-by de 3 bilhões de dólares com o FMI. A administração exibiu esse acordo como se tivesse conquistado o antigo império persa. Esse é o vigésimo terceiro programa do FMI que um governo paquistanês “negocia” com o FMI, que já declarou que o Paquistão precisa de mais programas para alcançar a estabilidade (Kiani, 2013). A liberação desse dinheiro estava condicionada à adoção das seguintes medidas pelo governo: (1) remover todos os subsídios relacionados à eletricidade, gás e combustível; (2) aumentar a taxa de juros; (3) permitir que o mercado determine a taxa de câmbio; e (4) reestruturar as empresas públicas. O Paquistão não teve outra opção a não ser cumprir essas condições, com o resultado inevitável de uma inflação ainda mais devastadora.

 

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Orçamento nacional do Paquistão anulado

Em junho de 2023, o ministro das Finanças Ishaq Dar apresentou o orçamento anual do governo à Assembleia Nacional do Paquistão. Embora fosse amplamente esperado que o orçamento fosse baseado em extrema austeridade, com a proximidade das eleições em outubro, o Movimento Democrático do Paquistão (MDP) decidiu não aumentar os impostos nem reduzir os gastos do Estado. Em vez disso, aumentou os salários e as pensões dos funcionários públicos em até 35% (Shahnawaz, 2023). O novo orçamento tinha como premissa a tênue suposição de que o Paquistão conseguiria levantar 22 bilhões de dólares de outros países e das IFIs (Al Jazeera, 2023). Isso teria aumentado as obrigações da dívida externa do Paquistão para quase 150 bilhões de dólares, cerca de metade do PIB anual do país.

Entretanto, com a aprovação do orçamento pela Assembleia Nacional, o FMI não estava disposto a concordar com o Acordo Stand-by. Para garantir o acordo com o FMI, o ministro da Fazenda alterou unilateralmente o orçamento, reduzindo os gastos do governo em   298 milhões de dólares e outros 735 milhões em novos impostos (Khan, 2023). Nenhuma dessas medidas foi aprovada pela Assembleia Nacional, nem houve debate público sobre o novo orçamento. Somente depois de receber a garantia de que haveria um novo orçamento, o FMI concordou com o Acordo Stand-by. A atuação do ministro das Finanças, Dar, anulando os representantes eleitos do povo paquistanês, essencialmente a pedido do FMI, foi a violação mais flagrante da soberania econômica do Paquistão nos 76 anos desde a independência.

Países como o Paquistão perderam completamente o controle sobre suas economias. Outra evidência disso é o fato de que o Banco do Estado do Paquistão é legalmente autônomo em relação ao governo e, muitas vezes, é chefiado por ex-economistas do FMI. Para garantir um acordo com o FMI, espera-se que o governo aceite as políticas do Fundo com relação ao comércio internacional, às taxas de juros, aos impostos, aos gastos do governo e até mesmo aos preços de bens necessários, como eletricidade, gasolina, diesel e gás. Portanto, a política monetária, a política fiscal ou a política econômica geral não está mais sob o controle do Paquistão. Se o governo paquistanês quisesse estimular a economia aumentando os gastos do setor público por meio de uma política monetária expansionista (como sugere a Teoria Monetária Moderna), ele simplesmente não conseguiria. O diretor do Banco do Estado do Paquistão tem o poder de recusar as diretrizes do governo para expandir a oferta de moeda.

 

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Viva dentro de suas possibilidades

A máxima do FMI para todos os países do Terceiro Mundo é “viver dentro de suas possibilidades”. Esse parece ser um conselho sensato, pois, afinal de contas, qualquer família, empresa ou país que gasta além de seus ganhos se endividará. Dessa forma, os governos não devem gastar além do que arrecadam em impostos, e os países não devem importar mais do que exportam. No entanto, o Paquistão comete esses dois “pecados”, o que leva às seguintes perguntas: por que o Paquistão não consegue controlar suas importações? Por que os economistas altamente qualificados do governo não podem sentar e resolver o problema? Como o país ganha cerca de 50 bilhões de dólares por ano (20 bilhões de exportações e 30 bilhões de remessas), suas importações deveriam estar na faixa de 50 bilhões, e não no valor atual de 70 bilhões. Se todas as famílias entendem que não se pode gastar mais do que se ganha, como é que esses economistas, equipados com as mais sofisticadas habilidades matemáticas, não conseguem planejar o que e quanto o governo importará? Se os países do Terceiro Mundo pudessem fazer esse tipo de plano, eles nunca teriam déficits na balança de pagamentos, déficits em conta corrente ou reservas cambiais cada vez menores. Eles nunca precisariam pedir dinheiro emprestado a nenhuma IFI. Por que isso não acontece?

Para responder a essas perguntas, vamos nos aprofundar nas quatro principais recomendações do FMI para os beneficiários de empréstimos, bem como em seu impacto sobre países em desenvolvimento como o Paquistão. Em primeiro lugar, o FMI recomenda que o Paquistão remova todas as barreiras às exportações e importações e permita que o mercado determine o preço do dólar em relação à rúpia. Isso significa, na prática, que o governo não consegue regular o comércio internacional para evitar déficits comerciais. As flutuações no preço do dólar deveriam equilibrar o comércio, mas não é isso que acontece na prática: à medida que o dólar sobe, também sobe o preço dos insumos para os setores de exportação do Paquistão. Consequentemente, os setores paquistaneses não conseguem se tornar mais competitivos, e a economia sofre com a inflação pressionada pelos custos.

O FMI diz ao Paquistão para viver dentro de suas possibilidades, mas não permite que o governo controle seus déficits em conta corrente regulando a taxa de câmbio. Durante o período em que o FMI não estava disposto a conceder crédito ao governo do Paquistão, o país conseguiu reduzir seus déficits de conta corrente em 75% restringindo as cartas de crédito5 aos importadores (Salman, 2023).

A incapacidade do governo de regular o dólar também tem um impacto significativo em sua dívida externa, que foi acumulada em dólares e é sensível a flutuações na taxa de câmbio. Por exemplo, se o valor da rupia em relação ao dólar aumentar em 10%, isso, por sua vez, aumentaria as obrigações da dívida externa do Paquistão em 10%, de 37 trilhões de rúpias para 41 trilhões de rúpias (em dólares, 130 bilhões a 144 bilhões). Como as obrigações totais da dívida do Paquistão são mais de seis vezes suas exportações anuais, mesmo que o país conseguisse aumentar suas exportações, isso seria uma gota d’água em comparação ao que o país perde com o crescimento de suas dívidas externas. É assim que cai ainda mais na escala da divisão internacional do trabalho.

A desvalorização da rúpia também leva a aumentos drásticos no preço de mercadorias vitais, como plásticos, metais, aço e produtos químicos industriais. Durante a maior parte de sua história, o Paquistão exportou algodão para outros países, mas, em uma chocante reversão dessa tendência, agora gasta cerca de 2 bilhões de dólares por ano em importações de algodão bruto que é usado na produção têxtil para exportação (Trading Economics, 2023). A produção doméstica de algodão ficou muito aquém do esperado, principalmente devido à falta de desenvolvimento de novas sementes e ao fato de se incentivar a produção de cana-de-açúcar no mercado interno. Naturalmente, quando o dólar sobe, o preço do algodão bruto importado também sobe, deteriorando ainda mais a competitividade dos exportadores. Como a base tecnológica das indústrias do Paquistão pode ser aprimorada se o dólar se valorizar e aumentar o custo de importação de maquinário mais sofisticado?

O que agrava ainda mais esses problemas é o fato de que o capital privado vem deixando o Paquistão em um ritmo constante. A classe capitalista sempre manteve seus ativos diversificados fora do país. Portanto, embora alguns ativos estejam no Paquistão, grande parte da riqueza da classe dominante está estacionada no exterior, em bancos estrangeiros e imóveis no Oriente Médio. O regime de livre comércio facilita a movimentação do capital, enquanto a mão de obra é rigidamente regulamentada pelas leis de imigração (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2018). O Paquistão, como se vê, está perdendo capital e mão de obra em um ritmo impressionante. O regime de livre comércio do FMI tira o poder dos países do Terceiro Mundo de regular a fuga de capitais.

A fuga total de capital do Paquistão entre 1978 e 2018 chegou a 333 bilhões de dólares (a taxas de 2010) e, somente entre 2013 e 2014, os paquistaneses compraram propriedades no valor de mais de 4,3 bilhões de dólares em Dubai, de acordo com o The Nation (Akram et. al., 2023; The Nation, 2015). O Estado paquistanês não consegue controlar essa fuga de capital e promover o investimento doméstico no país. Como o dólar continua subindo, mesmo uma alta taxa de juros não pode compensar o dinheiro que as empresas perdem devido à desvalorização da rúpia. Portanto, mesmo que os bancos do Oriente Médio ou do Ocidente ofereçam taxas de juros mais baixas, os paquistaneses preferem investir nesses bancos em vez de arriscar investir seu capital no Paquistão.

O êxodo de mão de obra qualificada ou “fuga de cérebros” representa um problema adicional. Em 2022, 800 mil pessoas deixaram o Paquistão para trabalhar no exterior, um número que deve chegar a um milhão em 2023 (Daily Times, 2023). Muitas dessas pessoas são trabalhadores produtivos no auge de sua juventude. Alguma economia pode progredir se perder um milhão de trabalhadores qualificados todos os anos? Os trabalhadores irão atrás do capital e, portanto, ambos estão voando do Paquistão. O que resta é um país que produz algumas peças têxteis em indústrias ultrapassadas, criadas em uma época em que o Paquistão tinha maior valor estratégico para o Ocidente, e que se tornou um fornecedor de mão de obra pouco qualificada para o Oriente Médio e a Europa.

O FMI recomenda que o governo elimine os subsídios ao combustível e à eletricidade, sendo que o último representa a maior parte dos subsídios no orçamento nacional de 2023 (Bhutta, 2023; Reuters, 2023). Ironicamente, a privatização da energia é o principal motivo pelo qual o governo paquistanês não consegue equilibrar seu orçamento: do 1 trilhão de rúpias (3,7 bilhões de dólares) concedidos em subsídios, 677 bilhões de rúpias (2,34 bilhões de dólares) são pagos ao setor energético. Embora alguns IPPs sejam de propriedade ou operados por paquistaneses, muitos são de propriedade estrangeira ou operam com investimentos consideráveis do exterior. Se os pagamentos de subsídios não forem feitos, os IPPs podem levar o Paquistão a um tribunal no Centro Internacional para a Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID, na sigla em inglês). Existe um precedente para essa linha de ação. Em 2020, o ICSID concedeu à empresa canadense-chilena Tethyan Copper quase 6 bilhões de dólares em danos depois que o Paquistão suspendeu o projeto de mineração Reko Diq em meio a uma disputa de arrendamento.

Apesar da depressão econômica pela qual o país está passando, o FMI recomenda cortar gastos, introduzir novos impostos e manter uma taxa de juros incrivelmente alta para combater a inflação (a taxa de juros interbancária do Paquistão é atualmente de 21%). Em outras palavras, no exato momento em que a demanda agregada está vacilando, as recomendações de política do FMI destruiriam as oportunidades de estimular a economia, reduzindo o investimento público e desencorajando o investimento privado, inevitavelmente aprofundando a estagflação do Paquistão.

Além disso, o FMI recomenda a “reestruturação” das empresas públicas. Embora essas entidades, que foram negligenciadas por décadas, certamente precisem de uma reestruturação e de investimentos sérios, não é isso que o FMI quer dizer. Em vez disso, o Fundo está sugerindo que o Estado considere a possibilidade de privatizar a propriedade ou a administração das empresas estatais, mantendo-se inflexível quanto aos pagamentos feitos pelo Estado aos IPPs, que respondem pela maior parte dos subsídios estatais. Essa postura é paradoxal: as empresas públicas que já estão tendo prejuízo e precisam de novos investimentos significativos para obter lucro não serão compradas por empresas privadas. Ao mesmo tempo, as recomendações de política do FMI não permitem que o governo faça os investimentos necessários para melhorar essas empresas, de modo que elas possam ter um desempenho eficiente.

 

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Abrindo o Paquistão para o comércio

Em sua declaração de missão, o FMI alega que “promove um alto nível de emprego e crescimento econômico sustentável e reduz a pobreza em todo o mundo”. No entanto, esses objetivos são totalmente secundários em relação aos seus três objetivos principais: primeiro, “promover a cooperação monetária global”, ou seja, garantir que o mercado determine a taxa do dólar; segundo, “garantir a estabilidade financeira”, eliminando a política keynesiana de gastos fiscais deficitários para estimular a economia; e terceiro, “facilitar o comércio internacional”, removendo restrições de importação de qualquer tipo (FMI, 2023).

O FMI tem uma fé dogmática no mercado como uma cura para tudo e raramente estuda as economias nacionais em detalhes antes de emitir suas prescrições de tamanho único. Sua solução para quase todos os problemas econômicos é simplesmente deixar o mercado determinar todos os preços, sob a falsa suposição de que o resto se encaixará magicamente. Em vez de procurar entender as diversas realidades dos países para os quais concede empréstimos, o FMI está preocupado principalmente em garantir que nenhum país ao seu alcance se desvie da seguinte fórmula: liberalizar o comércio internacional, eliminar o déficit fiscal, deixar o mercado determinar a taxa do dólar e privatizar a economia.

A estratégia do FMI não foi projetada para aumentar o crescimento no Paquistão, o que, no mínimo, exigiria taxas de juros baixas e/ou maiores gastos do setor público. Em vez disso, ele foi projetado para manter o país aberto ao capital internacional para fazer negócios. O Paquistão não é, de forma alguma, um caso extraordinário; ele apenas ilustra o modelo geral do FMI para todas as economias, sejam elas grandes ou pequenas, com pouco interesse se suas ações transformarem uma recessão cíclica em uma depressão.

 

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A inflação e a luta de classes

Juntas, essas escolhas de política econômica tiveram duas implicações devastadoras para a luta de classes no Paquistão. A primeira está relacionada ao impacto diferencial da inflação sobre a classe trabalhadora e as elites do Paquistão. A inflação tem pouco impacto sobre as elites paquistanesas, que retêm investimentos líquidos para administrar seus negócios no país e mantêm a maior parte de sua riqueza no exterior. A inflação local, na verdade, aumenta o valor de seus ativos de propriedade estrangeira no Paquistão, já que eles geralmente são mantidos em dólares. A situação é totalmente diferente para a classe trabalhadora e para aqueles que estão na linha da pobreza, que são duramente atingidos pelos efeitos da inflação. No Paquistão, a desigualdade piorou, pois a classe trabalhadora e os pobres só têm bens dentro do país (se é que têm).

Em segundo lugar, a inflação exacerbou o problema econômico central do Paquistão, ou seja, a incapacidade de reduzir seu déficit comercial. No mercado internacional, os países cuja produtividade do trabalho não aumenta ou que não têm recursos naturais valiosos para vender (como petróleo, gás, ouro e minérios) inevitavelmente ficam em desvantagem na divisão global do trabalho. O capitalismo é um sistema de concorrência. Os trabalhadores competem com os trabalhadores, os capitalistas competem com os capitalistas e os países competem com outros países. Aqueles que não conseguem competir enfrentam condições adversas de comércio. Como os defensores da globalização não se cansam de nos lembrar, quase todos os países estão integrados em um mercado mundial e, portanto, as economias nacionais simplesmente não podem funcionar sem o comércio internacional.

À medida que o Paquistão sai perdendo na corrida para criar produtos que o mundo exige, o país passa por uma crise cíclica debilitante. As únicas opções de curto prazo recomendadas pelo FMI garantem que o Paquistão permaneça nesse ciclo no longo prazo. A estrutura de políticas do FMI é uma esteira da qual os países do Terceiro Mundo nunca poderão sair; ela manterá o Paquistão em uma configuração economicamente dependente.

Os economistas neoliberais ficam indignados com meras sugestões de que o mercado não aloca recursos de forma eficiente, ou que os mercados são voláteis e, o mais importante, que os chamados equilíbrios de mercado não maximizam a produção ou o crescimento, mas apenas os lucros. Níveis semelhantes de indignação são expressos na mídia paquistanesa, dirigidos ao governo por não cumprir suas obrigações com o FMI. Mas essas perspectivas ignoram completamente o fato de que os representantes eleitos têm uma obrigação para com o povo. Os custos econômicos e humanos dos programas do FMI são tão extremos que nenhuma liderança política que necessite de apoio público pode executá-los integralmente, pois são fundamentalmente antidemocráticos. O que o FMI está exigindo só pode ser implementado por meio da destruição da democracia representativa, mesmo em sua forma parlamentar burguesa.

As primeiras medidas que o Paquistão pode tomar em direção à independência econômica seriam regular o comércio internacional e a taxa de câmbio, retomar o controle do Banco do Estado do Paquistão e rejeitar qualquer orçamento que não tenha sido aprovado pelos representantes eleitos pelo povo. Embora isso ainda esteja muito longe do socialismo, seria pelo menos um grande passo à frente no contexto atual, em que até mesmo a possibilidade de desenvolvimento capitalista nacional independente foi eliminada da maior parte do mundo.

 

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As ramificações políticas e militares da crise econômica

O governo de coalizão do Movimento Democrático do Paquistão (MDP), como todos os regimes que chegaram ao poder no Paquistão, estava desesperado para iniciar um programa de desenvolvimento econômico. Lançou então uma nova iniciativa para atrair investimentos estrangeiros e propagou uma série de palavras-chave, como “mudança de paradigma”, “governo coletivo” e “operação em uma única janela” (Business Recorder, 2023). No entanto, a realidade sombria é que o governo convidou o exército para gerenciar a economia e garantir que todos os investimentos estrangeiros sejam gerenciados, coordenados e concluídos. Se surgirem preocupações ambientais ou trabalhistas, ou se as exigências de uma determinada província interferirem nos interesses comerciais, o exército removerá esses chamados gargalos. Sabemos pela história, é claro, que os gargalos econômicos geralmente são eliminados com sacrifícios humanos.

A abordagem centrada nas forças armadas do governo MDP certamente colocará o governo federal em conflito com os governos provinciais. De acordo com a décima oitava emenda da Constituição, muitas áreas, como educação, trabalho e meio ambiente, agora estão sob a alçada dos governos provinciais. Como os militares se tornam responsáveis pelo renascimento econômico do Paquistão, qualquer objeção a megaprojetos que afetem as relações interprovinciais provavelmente será considerada um desafio direto ao poder dos militares. Isso causará maiores tensões entre o governo federal, dominado pelos militares, e os governos provinciais, que são dominados por partidos políticos.

Isso representa um movimento tectônico que passou quase completamente despercebido pela maioria dos comentaristas políticos. A atual coalizão do MDP se uniu inicialmente em 2006, quando o Partido Popular do Paquistão, de centro-esquerda, convidou a Liga Muçulmana do Paquistão (Nawaz), de centro-direita, a assinar a Carta da Democracia, que afirmava que nenhum dos partidos colaboraria com os militares para derrubar o governo do outro. Foi notável o fato de os dois maiores partidos do Paquistão terem aparentemente se unido contra o papel dos militares em questões civis, já que, na maior parte da história do país, o governo foi dirigido por ditadores militares ou com a participação ativa dos militares. Alguns progressistas depositaram muita fé nessa aliança, esperando que ela sinalizasse a saída dos militares paquistaneses da esfera política.

Foi justamente no contexto dessa aliança ostensivamente antiestablishment dos maiores partidos do Paquistão que os militares supostamente apoiaram o Movimento Paquistanês por Justiça (MPJ), especialmente depois de 2014 quando o governo de Nawaz e o establishment militar tiveram um grande desentendimento. O MPJ atacou os outros partidos, chamando-os de corruptos e incompetentes, e a mídia (em grande parte controlada pelos militares) ecoou essa narrativa. O MDP argumentou que o candidato do MPJ, Imran Khan, era apenas um líder de forças que queriam minar a Carta da Democracia e levar os militares de volta ao poder. A oposição se referiu a Khan como o “primeiro ministro eleito” e apontou como a influência militar sobre a mídia, a economia e as decisões políticas vinham crescendo durante o mandato do MPJ.

Apesar de acusar o MPJ de ser um “regime híbrido”, desde que chegou ao poder, o governo do MDP foi ainda mais longe no caminho militarista em todos os níveis (Alam, 2023). O exército não está apenas administrando a situação política do país, reprimindo o MPJ e outros partidos de oposição.  Ele também foi formalmente convidado a assumir o controle dos assuntos econômicos do país. Isso reflete uma tendência mais ampla na qual as restrições econômicas que o capital internacional impõe aos países do Terceiro Mundo acabam levando a liderança política desses países a colocar a gestão da economia nas mãos dos militares.

A noção de que os militares devem ser contidos dentro de seu “papel constitucional” simplesmente foi por água abaixo, pois o MDP, assolado por uma crise econômica e desafiado pelo MPJ, achou mais fácil contar com os militares não apenas para afastar a oposição, mas inclusive para ajudar a estimular a economia e concluir projetos econômicos. A Carta da Democracia se tornou letra morta. O verdadeiro beneficiário desse conflito continua sendo o exército paquistanês, cuja hegemonia sobre o domínio político, econômico e ideológico está agora solidamente enraizada. As condições econômicas adversas criadas pelo capital internacional e pelo FMI criaram as condições para um Estado e uma sociedade autoritários.

 

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Conclusão: Para onde vai o Paquistão?

Os marxistas tendem a pensar que a história está inexoravelmente avançando. No quadro mais amplo do desenvolvimento da humanidade, isso é indubitavelmente verdadeiro. No entanto, isso não significa que cada vila, território ou país esteja sempre avançando. Mesmo enquanto a história avança, muitas sociedades são destruídas (como nos projetos coloniais e de colonização), estagnam (Impérios Bizantino ou Otomano) ou regridem. As duas últimas tendências parecem se aplicar à situação atual no Paquistão.

Depois de fazer algum progresso histórico real após a independência, o Paquistão entrou em um período de estagnação social, econômica e intelectual generalizada, ou talvez até mesmo de regressão. Portanto, a tarefa histórica colocada diante do povo do Paquistão hoje é organizar, mobilizar e lutar pela independência econômica, assim como fizeram para conquistar sua independência política do colonialismo britânico em 1947. Essa não é uma tarefa exclusiva do Paquistão, mas de todo o Terceiro Mundo, que sofre com as garras dos acordos financeiros internacionais neocoloniais que destroem as oportunidades de desenvolvimento econômico.


 

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Notas

1 Para exemplos nesse sentido, ver Mooman (2022) e Peshimam (2023).

2 Estas foram a Emenda Symington (adotada em 1976 e implementada em 1978), a Emenda Pressler (1990) e a Emenda Glenn (adotada em 1977, mas aplicada ao Paquistão em 1998). Aproximadamente 1,2 bilhão de dólares em assistência externa dos EUA foi prometido ao Paquistão para 2002-2003. Ver Momani (2004, p. 45).

3 Desde a década de 1950, o governo do Paquistão tem promovido as exportações por meio de descontos em impostos e esquemas de licenciamento de importação. Ver, por exemplo, Governo do Paquistão (2020). Sobre os benefícios da promoção de exportações, ver Ahmad et. al., 2019.

4 Os encargos de capacidade são pagamentos feitos pelo governo a produtores privados de energia para cobrir os retornos sobre investimentos, incluindo custos de compra de terrenos, projeto, instalação, impostos, seguro, administração, serviço da dívida e retorno sobre o patrimônio. Esses encargos são fixados de acordo com fatores como flutuações nas taxas de câmbio e de juros.

5 Uma carta de crédito é uma garantia de um banco de que o pagamento será feito aos fornecedores estrangeiros depois que as mercadorias forem recebidas e liberadas pela alfândega.

 

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