DossiêNº 73

Como o Movimento da Ciência Popular está trazendo alegria e igualdade para a educação em Karnataka, Índia

O nosso mais recente dossiê explora como o Movimento da Ciência Popular está desafiando a abordagem neoliberal da educação e promovendo a aprendizagem científica crítica em Karnataka, na Índia
 
Alunos experimentam óculos 3D que fizeram no canto Madu Adu (ciência, ou “mãos a obra”).
As colagens neste dossiê foram criadas pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social com base em fotografias de Satarupa Chakraborty durante o Festival Alegria em Aprender de 2023, em Siddapura. Essas fotografias estão entrelaçadas com imagens recortadas do Manual do Festival Alegria em Aprender (Kalika Habba Kaipidi), publicado pelo Samagra Shikshana Karnataka (Departamento de Educação Primária e Secundária, Governo de Karnataka) em 2022.

Alunos de várias escolas em Siddapura e vilarejos próximos participam de um ato para inaugurar o Festival Alegria em Aprender 2023.

O Movimento da Ciência Popular na Índia tem poucos paralelos no resto do mundo em termos de conceito, escala e escopo. O movimento começou popularizando a ciência em uma nação jovem e independente, na qual a maioria da população (87,8%) era analfabeta, e pouco familiarizada com conceitos científicos modernos (Shah, 2013, p. 12-16). O movimento propõe para si um papel complexo, adotando uma compreensão rigorosa da ciência que engloba fenômenos naturais e sociais, bem como as interações entre eles. Desde sua fundação, na década de 1960, o Movimento da Ciência Popular tem trabalhado para democratizar a geração de conhecimento e sua disseminação e integração na sociedade indiana, tendo como foco a consciência sociocultural do povo indiano. O movimento vê o pensamento científico e a aplicação de princípios científicos como necessários para a construção de uma sociedade que questione e compreenda as desigualdades e possa, enfim, escolher o caminho de ruptura com hierarquias opressoras. Uma consciência que está presa em dogmas religiosos, que aceita passivamente a tradição e a superstição, que é incapaz de investigar e analisar a natureza e a sociedade não tem as ferramentas científicas necessárias para construir um mundo social igualitário.

Este dossiê, Como o Movimento da Ciência Popular está trazendo alegria e igualdade para a educação em Karnataka, Índia, concentra-se na pedagogia e na filosofia do trabalho do movimento com crianças em idade escolar em Karnataka, um estado no sul da Índia com uma população de 69 milhões de pessoas. O documento se baseia em entrevistas com professores e militantes do Movimento da Ciência Popular e na participação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social nos Festivais Alegria em Aprender (também conhecido como Kalika Habba), que ocorreu entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023.

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As origens do Movimento da Ciência Popular

Em seus primeiros anos, o foco principal do Movimento da Ciência Popular era popularizar a ciência, explicando questões complexas em uma linguagem acessível e cotidiana, com o objetivo de combater crenças supersticiosas que apontavam a bruxaria como a causa de doenças, mortes e desastres (Isaac, Ekbal, 1988; Parameswaran, 2013). Nesse período, o movimento era composto em grande parte por várias organizações dispersas, muitas delas concentradas no estado de Kerala, no sul do país. O mais importante deles, o Kerala Sasthra Sahitya Parishad (Fórum de Escritores Científicos de Kerala, ou KSSP, na sigla em inglês), foi formalmente inaugurado em 1967. Várias das principais pessoas envolvidas nesse movimento estudaram na União Soviética e trouxeram os desenvolvimentos feitos pelos soviéticos para a Índia. M. P. Parameswaran, por exemplo, estudou engenharia nuclear no Instituto de Energia de Moscou (1965) e voltou a Bombaim para fundar a Federation of Indian Languages Science Association [Associação Científica da Federação de Línguas Indianas] em 1966, ansioso para popularizar as ciências em seu país.

O Movimento da Ciência Popular tem suas raízes no movimento nacional de independência da Índia, que tinha uma visão claramente anti-imperialista das ciências, em contraste com seu uso colonialista como um instrumento de exploração e lucro. Os cientistas daquela época viam seu campo como um elemento central no caminho para a emancipação do trabalho penoso e da opressão e procuravam combinar, como escreveu Amit Sen Gupta, “o potencial libertador da ciência com a consciência de que ela só pode prosperar entre pessoas que são verdadeiramente livres” (Sengupta, 2013). A importância que a nação recém-independente deu às ciências está refletida na Constituição Indiana (Artigo 51A), que afirma que “Será dever de todo cidadão da Índia […] desenvolver uma atitude científica, o humanismo e o espírito de investigação e reforma” (Ministry of Law and Justice, Government of India, 1950).

Quando a Índia independente decidiu embarcar em um caminho autônomo de desenvolvimento e romper com o centro de gravidade imperialista, tornou-se imperativo formar cientistas, engenheiros, médicos e outros profissionais científicos modernos que pudessem construir uma base sólida para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Esse esforço teve de enfrentar a sociedade rural do país, em grande parte atrasada e assolada por uma série de práticas retrógradas. O Movimento da Ciência Popular conseguiu fazer um progresso significativo nesse sentido, alimentando intelectuais como professores, engenheiros, médicos, pesquisadores e cientistas que eram produtos da vibrante cultura acadêmica pós-independência, enraizada em um forte interesse no desenvolvimento nacional, muitos deles parte do movimento estudantil ou influenciados pelos discursos sociopolíticos desse meio.

Nos anos que se seguiram à independência da Índia, o Estado desenvolveu institutos educacionais de qualidade para formar um grupo de intelectuais com visão de futuro e pensamento crítico, que não apenas lançariam as bases para a autonomia do país em termos de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico e industrial, mas também seriam catalisadores no rompimento dos grilhões profundamente enraizados do feudalismo. No entanto, a verdade é que eles eram praticamente inacessíveis para a maioria da população, limitados em parte pelos recursos públicos insuficientes alocados a eles. Até mesmo as melhorias na alfabetização foram – e continuam sendo – lentas, com milhões de crianças crescendo sem entrar nas escolas ou tendo saído delas muito cedo (Social and Rural Research Institute, 2014).

Nesse contexto, o KSSP, apoiado pelo movimento de esquerda no estado de Kerala, no sul do país, desenvolveu programas inovadores de alfabetização científica. Um desses programas foi a formação de grupos culturais conhecidos como kalajathas, na década de 1970, por meio dos quais os militantes aproximaram a ciência das pessoas, principalmente nos vilarejos, por meio da arte, da música, da dança e do teatro. Isso inspirou campanhas semelhantes em estados de todo o país, bem como a formação da Bharat Gyan Vigyan Samiti (Associação Indiana de Conhecimento Científico ou BGVS, por sua sigla) em vários estados, incluindo Karnataka. Com base no trabalho do KSSP em Kerala, a BGVS tornou-se a principal força que impulsionou o Movimento da Ciência Popular em Karnataka e um ator importante na promoção da ciência em muitos estados do país.

Em 1984, um vazamento de gás e uma explosão na fábrica da Union Carbide na cidade de Bhopal (estado de Madhya Pradesh) estimularam a formação de muitos grupos de alfabetização científica em toda a Índia, vários dos quais se propuseram a explicar o aspecto criminal do vazamento e da explosão e a buscar justiça para os sobreviventes e as vítimas. Muitos desses grupos começaram a trabalhar juntos, o que culminou na formação da Bharat Jan Vigyan Jatha (BJVJ) ou Associação Científica Popular Indiana, que buscava aumentar o letramento popular sobre ciência em todo o país. Esse processo levou à formação de uma rede nacional de 26 organizações científicas em 1988, denominada All India People’s Science Network [Rede Científica Popular de Toda a Índia] (AIPSN, na sigla em inglês).

À medida que a AIPSN deixava sua marca no país, várias agências governamentais entraram em contato com ela para ajudar na Missão Nacional de Alfabetização, cujo objetivo era diminuir o analfabetismo de adultos na zona rural da Índia. A AIPSN viu uma imensa oportunidade na missão de levar seus esforços de alfabetização científica a todo o país. Logo, as unidades da BGVS em cada estado formaram uma rede por meio da AIPSN para auxiliar na tarefa, mantendo sua independência.

Por meio desses programas governamentais em toda a Índia, a AIPSN conseguiu crescer nos estados do norte da Índia, onde os movimentos progressistas historicamente não conseguiram desenvolver uma presença forte. Durante esse movimento de alfabetização de adultos, a AIPSN conseguiu alcançar 60 mil vilarejos em vários estados da Índia por meio da BGVS – um exercício sem precedentes no qual milhares de ativistas, professores e alunos viajaram por todo o país para ensinar as pessoas da Índia rural. Embora o Movimento da Ciência Popular tenha um longo histórico de atividades de construção para promover a ciência entre as crianças, a incorporação de dezenas de milhares de professores ao movimento de alfabetização por meio da BGVS permitiu que essas práticas chegassem às salas de aula em uma escala muito maior e impulsionou a democratização do movimento científico.


O proprietário de uma fábrica de óleo de coco explica o processo de produção aos alunos durante o Festival Alegria em Aprender de 2023 em Siddapura.

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O neoliberalismo e o movimento científico

A BGVS e a AIPSN decolaram no final da década de 1980 e início da década de 1990, período em que a classe dominante da Índia estava impondo uma estrutura neoliberal ao país. Enquanto os ativistas da AIPSN se espalhavam pelo país para promover a alfabetização e combater a superstição como base para o conhecimento científico, as forças da extrema direita viajavam pela Índia para criar uma campanha para demolir uma mesquita do século XVI em Ayodhya (estado de Uttar Pradesh), mergulhando o país na divisão social. Desde então, a AIPSN tem trabalhado para intervir em uma sociedade que se tornou cada vez mais devastada pela crescente legitimidade do fanatismo religioso e do conservadorismo, bem como pela destruição dos sistemas de conhecimento e educação pelas forças neoliberais.

Essas forças neoliberais mudaram a direção de longo prazo do sistema educacional da Índia.1 Enquanto persistem os males profundamente enraizados gerados pela escassez de financiamento e de acesso à educação, essa visão nacional para a educação se reduziu a pouco mais do que fornecer uma força de trabalho barata, equipada com habilidades que beneficiam o capital nacional e internacional, em detrimento de uma educação completa que promova o pensamento crítico na sociedade. Aprender qualquer coisa além das habilidades técnicas imediatas necessárias para alimentar as indústrias não é visto apenas como um sério desperdício de recursos públicos, mas também como uma ameaça às estruturas sociais autoritárias e às ações estatais existentes. Nesse sistema orientado para provas e para o lucro, aqueles sem recursos que não conseguem concluir sua educação e aqueles que obtêm seus diplomas estão unidos pelo fato de estarem sendo jogados em uma reserva de mão de obra barata, abundante e dócil. A redução do financiamento governamental sob o neoliberalismo privou milhões de crianças da educação primária, enquanto as famílias de outros milhões se endividam permanentemente para pagar uma escola particular. Essas escolas particulares maximizam o lucro aumentando as taxas e pagando salários baixos aos professores, ao mesmo tempo em que não oferecem condições favoráveis à educação.2

A abordagem neoliberal da educação esvazia a obrigação constitucional em relação à ciência e incentiva uma adesão cega a pensamentos e ações irracionais e, muitas vezes, odiosos e violentos, incluindo uma visão distorcida, mas orgulhosa, da história antiga e um desprezo pela história e pelos sistemas científicos. Por exemplo, livros didáticos no estado de Gujarat afirmam que a Índia antiga possuía habilidades de engenharia genética porque os filhos de Kunti (a mãe dos Pandavas no épico Mahabharata, do século IV) nasceram fora de seu útero. Enquanto isso, o tribunal superior da cidade de Allahabad (estado de Uttar Pradesh) afirmou em 2021 que as vacas exalam oxigênio, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, afirmou em 2014 que a Índia antiga era excelente em cirurgia plástica, conforme evidenciado pelo Lorde Shiva hindu, que substituiu a cabeça de seu filho Ganesh pela cabeça de um elefante. Essa lógica permite que o capital obtenha sua mão de obra dócil, enquanto a sociedade obtém uma população que busca soluções para sua miséria em todos os lugares errados.

É importante observar que, diferentemente das ONGs que atuam na esfera social, o Movimento da Ciência Popular mantém distância do financiamento neoliberal. Por exemplo, a BGVS em Karnataka evita rigorosamente qualquer financiamento corporativo e institucional, como o do Banco Mundial e até mesmo de agências das Organização das Nações Unidas (ONU). Embora trabalhe com o governo, não recebe fundos do governo e depende totalmente das contribuições das pessoas.

A capa desta edição da revista mensal Professor da BGVS em 2021 retrata as escolas de bairro que a organização iniciou no início da pandemia de Covid-19.
Crédito: Megha Ramachandra

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As escolas de bairro da BGVS

Foi nesse contexto de investida do neoliberalismo, do crescente sufocamento da educação pública e do aumento da divisão socioeconômica entre escolas públicas e privadas, a partir da década de 1990, que a BGVS se expandiu. Com a força de professores militantes, a BGVS aproveitou todas as oportunidades para questionar, mudar e transformar os métodos pedagógicos predominantes nas escolas de vários estados indianos. A BGVS tem se envolvido ativamente no desenvolvimento e na implementação de uma metodologia criativa de ensino para combater o preconceito da elite na educação, que afasta as crianças da aprendizagem; a utilização de métodos de ensino não científicos que matam a curiosidade das crianças; e a influência nociva do sistema de castas e dos dogmas religiosos nas mentes dos jovens.

Quando a pandemia de Covid-19 chegou e as instituições neoliberais insistiram no ensino remoto em um contexto em que a maioria das crianças não tinha acesso à Internet ou a computadores (enquanto as que tinham acesso não aprendiam nada significativo), a BGVS, em Karnataka, deu início às escolas de bairro [vatara shalas]. Os professores de escolas públicas se ofereceram para administrar essas escolas em salões comunitários e espaços públicos como pátios de templos, mesquitas ou igrejas, de acordo com as recomendações sanitárias em meio à pandemia. As cerca de 60 escolas de bairro iniciais, a maioria em áreas rurais, foram possivelmente a primeira resposta organizada, pelo menos na Índia, para lidar com a interrupção da educação após o início do isolamento social em abril de 2020, atraindo o apoio dos pais e a atenção da mídia. Isso obrigou o governo a anunciar seu apoio às escolas do bairro. Até o final do ano, havia mais de 35 mil escolas de bairro em Karnataka.

Com a bem-sucedida experiência das escolas do bairro, a BGVS conseguiu convencer o departamento de educação do governo a atenuar, até certo ponto, a fixação do governo em “resultados de aprendizagem” orientados pelo mercado. A pedagogia das escolas de bairro inspirou a participação de um grande número de professores voluntários que ajudaram a convencer o departamento de educação de sua importância. Isso resultou não apenas em apoio governamental adicional para as escolas de bairro, mas também para os Festivais Alegria em Aprender, já que o pior da pandemia chegou ao fim em 2022.

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Os Festivais Alegria em Aprender

A alegria é essencial para o aprendizado. Essa perspectiva é sintetizada pelo canto e pela dança de alunos e professores como parte da metodologia dos festivais para ensinar ciências. Há dois componentes principais da metodologia dos festivais: primeiro, as quatro estações de aprendizagem nas quais as atividades dos festivais são divididas e, segundo, um programa de “convidado-anfitrião” por meio do qual crianças de outros vilarejos são colocadas em pares com alunos do vilarejo local, ultrapassando barreiras de casta, idioma e classe, vivendo e trabalhando juntos em pares durante os festivais. Embora o programa convidado-anfitrião ainda não tenha sido implementado em todos os festivais (e, na verdade, só esteja presente em uma minoria deles nesta fase), ele é fundamental para a metodologia desses eventos e para sua meta de acabar com as divisões socioeconômicas da sociedade indiana, com o objetivo de aumentar sua escala nos próximos anos.

Os festivais Alegria em Aprender 2022-2023 ampliaram a metodologia desenvolvida pelas escolas do bairro e se basearam nos 620 festivais que a BGVS realizou em 2019, antes da pandemia. Em contraposição às soluções neoliberais para o déficit educacional intensificado pela pandemia, esses festivais infantis são discutidos, projetados e implementados pelos próprios professores, com a participação dos pais, membros eleitos dos panchayats (autogovernos locais) dos vilarejos, comitês de monitoramento do desenvolvimento escolar e outros. Mais de 35 mil professores e 1 milhão de crianças participaram dos Festivais Alegria em Aprender de 2022-2023, que foram organizados em mais de 4.100 grupos (cada grupo é um conjunto de escolas, do 8º ao 12º ano, localizadas próximas em uma determinada área geográfica).

As crianças tocam, sentem, experimentam e exploram o assunto por conta própria, dando ao professor a oportunidade de explicar a mecânica e as teorias científicas relacionadas à atividade. Essa abordagem incentiva as crianças a experimentar, observar, compreender, analisar e encontrar padrões significativos na natureza e na sociedade enquanto trabalham em uma equipe coletiva. Essas atividades vão além de uma abordagem mais tradicional que se limita a palestras e livros didáticos, atraindo não apenas crianças, mas também seus pais nos pequenos vilarejos onde esses festivais são realizados.

Raveendra Kodi, um professor assistente no distrito de Udupi, em Karnataka, refletiu sobre essa forma de ensino:

A aprendizagem deve ir além da sala de aula; deve ser agradável e experimental, e deve desenvolver a curiosidade das crianças e sua capacidade de pensar criativamente e de se envolver criticamente. Nos focamos em como tornar o aprendizado interessante para as crianças.

Uday Gaonkar, professor de ciências, militante cultural e líder da BGVS, explicou que, embora as crianças muitas vezes não façam perguntas em uma sala de aula típica, elas geralmente participam mais se estiverem em um ambiente lúdico. Esse espaço de interação aberta é importante para seu crescimento intelectual. A pedagogia do movimento científico é, portanto, diferente do método convencional de ensino em sala de aula, que geralmente cria uma divisão entre “bons alunos” e “maus alunos” com base na adesão ao aceno acrítico com a cabeça em detrimento do pensamento crítico e do envolvimento prático. Uday Gaonkar reflete sobre o uso dessa abordagem de “aprender fazendo”:

Todas as quatro estações são divididas em duas faixas etárias. Por exemplo, quando crianças entre 10 e 13 anos de idade estudam uma árvore, elas a estudam de forma diferente das crianças mais velhas. As mesmas atividades podem ser realizadas de maneiras diferentes por grupos etários diferentes. As crianças mais velhas usam fórmulas de trigonometria um tanto complexas, o que as mais novas não conseguem fazer. Mas os alunos de todas as faixas etárias gostam dessas atividades, assim como os professores. As atividades em todas as estações de aprendizagem são projetadas de tal forma que não requerem especialistas; qualquer professor pode facilitá-las. Essas atividades ajudam os alunos a aprender coisas diferentes sem que lhes seja dito o que estão aprendendo.

Um grupo de estudantes apresenta o mapa feito depois de visitar a aldeia como parte da atividade do canto Uru Tiliyona (“descobrindoa aldeia”).

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As quatro estações de aprendizagem

O festival é organizado em quatro estações de aprendizagem: “descobrindo o vilarejo”(Uru Tiliyona); ciências, ou “mãos à obra”(Madu Adu); desenvolvimento da linguagem, ou “cantar e tocar”(Hadu Adu); e artesanato, ou “tesoura e papel”(Kagadha Kattari). Todas essas estações de aprendizagem têm o objetivo de desenvolver curiosidade, observação e habilidades interativas, aprendizagem em grupo e pensamento científico entre as crianças.

1) Uru Tiliyona (“descobrindo o vilarejo”)

 Na estação Uru Tiliyona, os alunos fazem um breve passeio pelo vilarejo, durante o qual entrevistam as pessoas, aprendem sobre sua cultura e biodiversidade de sua comunidade, estudam e praticam como realizar medições e, por fim, preparam um mapa do vilarejo. Os participantes realizam quatro atividades principais:

  • estudo da ecologia de um espaço definido;
  • estudo de um objeto ou área específica, como uma árvore, a terra ou o ambiente ao redor;
  • elaboração de mapas de uma localização geográfica;
  • entrevista com os moradores.

Essa metodologia pode ser usada para estudar outros aspectos da vida no vilarejo, por exemplo, como a eletricidade é usada. Em outra atividade, as crianças visitaram dez casas e coletaram informações básicas sobre o uso de eletricidade: quantas pessoas moram em determinada casa, quanta eletricidade usam ali e quanto pagam mensalmente pelo serviço. Com isso, eles conseguiram calcular o consumo de energia per capita. Em seguida, as crianças compartilharam os resultados de seu estudo com os moradores.

Outra atividade ensinou aos alunos sobre a biodiversidade local. Nessa atividade, uma mulher idosa carregando um amontoado de folhas ajudou os professores, explicando por que aquele tipo de árvore cresce na região e como os moradores se beneficiam dela. Em seguida, os alunos foram a uma fábrica de óleo de coco nas proximidades, onde o proprietário interrompeu a produção por uma hora para explicar o processo de fabricação do óleo, o uso de vários cocos para fazer diferentes produtos e como as máquinas funcionam. “Eles não são apenas festivais infantis”, disseram os organizadores da BGVS; “são festivais dos vilarejos”. Essa breve caminhada com as crianças deixou isso bem claro, pois todo o vilarejo interagiu com o Festival de diferentes maneiras.

2) Madu Adu (ciência, ou “mãos à obra”)

Nessa estação, as crianças aprendem como determinados experimentos levam a resultados definitivos por meio de atividades lúdicas baseadas em conceitos científicos. Essa estação de aprendizagem é extremamente popular devido ao uso de histórias, músicas e danças. As atividades incluem:

  • o experimento da roda de neve de Newton-Benham, ou o disco que desaparece. Quando um disco que exibe as cores primárias é girado, aparece a cor branca, o que facilita uma discussão sobre a percepção visual;
  • aprendizado da ciência do atrito criando brinquedos, cujos materiais demonstram resistência ao deslizamento, e depois brincando com eles;
  • reprodução de uma ligação de telefone usando copos de papel e cordas para aprender como o som viaja.

3) Hadu Adu (desenvolvimento da linguagem, ou “cantar e brincar”)

 Essa estação se concentra no desenvolvimento da linguagem, no pensamento crítico e em atividades coletivas. As atividades trazem à tona uma infinidade de expressões por meio de jogos, músicas, apresentações e conversas, e ajudam as crianças a se abrirem para o mundo por meio de palavras, mas também por meio de outras formas de expressão. Ashok Thekkatte, um professor responsável por essa estação, explicou:

O Hadu Adu é um setor para o desenvolvimento da linguagem e, por meio de canto, dança e outras atividades, incentivamos as crianças a trabalharem em equipe. Há uma atividade em que damos às crianças duas palavras que rimam e pedimos a elas que encontrem outras duas palavras que rimam, e então elas compõem poemas sozinhas. Esse exercício os ajuda a adquirir o domínio do idioma.

4) Kagadha Kattari (artesanato, ou “papel e tesoura”)

Essa estação oferece um espaço para as crianças fazerem experiências e serem criativas com vários materiais. Os professores contam histórias que as crianças são inspiradas a ilustrar. Essa atividade é menos estruturada e mais aberta do que as das outras estações, deixando espaço para que as crianças conduzam a atividade sozinhas e usem o papel, a tesoura e as canetas fornecidas para criar diferentes formas, bonecos e imagens. Por meio de atividades como origami e artesanato em papel, as crianças aprendem precisão, limpeza e concentração.

Um grupo de estudantes apresenta o mapa feito depois de visitar a aldeia como parte da atividade do canto Uru Tiliyona (“descobrindoa aldeia”).

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Quebrando barreiras

Os Festivais Alegria em Aprender e as escolas de bairro precisam enfrentar os aspectos regressivos da sociedade rural, principalmente as hierarquias de castas. Por exemplo, em uma das escolas da vizinhança – que as crianças da casta dominante e da casta dalit (casta oprimida) frequentavam durante a pandemia – as famílias da casta dominante se opuseram à entrada das crianças dalit em um templo do vilarejo onde a escola estava localizada. Os professores decidiram transferir a escola do bairro para a parte dalit do vilarejo, o que incomodou algumas famílias da casta dominante, que pediram aos professores que transferissem a escola de volta para o templo. Os professores disseram que só fariam isso se os pais da casta dominante concordassem que as crianças dalits pudessem entrar no templo, o que foi aceito. Como mostra essa anedota, os professores muitas vezes são capazes de fazer frente às estruturas sociais regressivas, experimentando maneiras criativas de romper barreiras sociais e preconceitos.

Outra abordagem desenvolvida como parte dos Festivais Alegria em Aprender para quebrar a discriminação profundamente enraizada em alguns lugares é chamada de método do convidado-anfitrião. Durante o Festival, as crianças de um distrito são alojadas nas casas de crianças de outro distrito, muitas vezes de diferentes origens socioeconômicas e castas. Por exemplo, durante o festival de Siddapura, 150 alunos da escola primária local e suas famílias hospedaram 150 crianças de outras partes de Karnataka em suas casas, trabalhando juntos durante os três dias do Festival. Cada par de crianças morava junto, comia junto e participava das atividades junto, superando as diferenças sociais, culturais, econômicas, linguísticas e outras entre elas.

Gaonkar nos ajudou a entender esse processo, que foi construído por longos períodos de luta:

É difícil quantificar e dizer com precisão em que escala nossos festivais causam impacto na sociedade. Mas certamente temos experiências extraordinárias. Em um festival em Sri Rangapatna, um estudante de Mangalore chamado Mohammad Hafil dormiu duas noites na casa de Punit, outro estudante. Hafil era de uma família abastada, enquanto Punit era de uma família de baixa renda. Naturalmente, havia problemas de recursos na casa de Punit, incluindo a falta de um banheiro, e até mesmo os alimentos que cada aluno estava acostumado a comer eram diferentes. No entanto, eles se tornaram amigos rapidamente. Antes de sair da casa de Punit, Hafil queria ver a avó de Punit, que já havia saído para trabalhar pela manhã. Então, ele pediu aos funcionários do departamento de educação que o levassem ao local de trabalho da avó. Depois de conhecer a avó, os oficiais perguntaram a ela se havia sido difícil aceitar Hafil em sua casa, pois ele era de outra religião. A avó de Punit simplesmente ignorou a pergunta.

Embora nem todos os casos levem a um entendimento mais generoso, isso ocorre com frequência. Nas reuniões de pais, surgem discussões em que os pais expressam sua reticência em receber crianças de outras origens. Essas discussões são importantes, especialmente porque os militantes da BGVS aproveitam essas hesitações para incentivar o companheirismo, em vez de silenciar essas manifestações públicas das evidentes hierarquias sociais.

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Professores como organizadores

Os professores são, sem dúvida, o coração dos Festivais Alegria em Aprender. Eles decidem o local do festival, coordenam o processo com o governo local, desenvolvem as estações de aprendizagem e atraem o vilarejo para o festival. Os professores que vivenciam o evento ensinam outros professores, desenvolvendo a BGVS e incorporando ainda mais os festivais nos vilarejos e na sociedade indiana em geral.

Os professores da BGVS passam cerca de 15 a 16 horas trabalhando no primeiro dia do festival, sob forte calor e umidade. À noite, quando os alunos saem, os professores se reúnem para avaliar o trabalho deles e discutir como melhorar os festivais. Essas discussões revelam a ética de trabalho dos professores e seu esforço constante para criar uma sala de aula igualitária e chegar aos alunos mais marginalizados. Esse ato de dedicação é resultado de um vibrante processo de formação, do engajamento de pais e da liderança do vilarejo e, por fim, da enorme sensação de satisfação ao ver os alunos desfrutando do processo educativo.

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Conclusão

O Festival Alegria em Aprender apresenta a filosofia do Movimento da Ciência Popular. A ciência e o conhecimento, nessa tradição, não são meramente acadêmicos. Em vez de se concentrarem no desenvolvimento individual, esse esforço social criativo desenvolve a capacidade dos alunos de pensar e refletir criticamente sobre o mundo. Ao envolver toda a comunidade do vilarejo no festival e ao envolver os alunos na prática da ciência (inclusive no estudo de sua produção agrária e de suas realidades econômicas), os festivais integram a ciência à comunidade como parte de um amplo processo cultural que responde diretamente ao ambiente e às condições materiais dos moradores e dos alunos, permitindo que eles desenvolvam uma compreensão baseada em fatos e observações feitas em seu contexto social.

Há muito tempo, o trabalho manual na Índia é desvalorizado e mantido separado da teoria e do conhecimento, em grande parte devido ao sistema de castas e depois exacerbado pela investida do neoliberalismo a partir de 1991. Isso cria um ambiente no qual a prática, a observação e os experimentos desempenham um papel secundário no ensino de ciências. As ocupações e comunidades associadas ao trabalho manual são menosprezadas e seus trabalhadores são privados de educação de qualidade e mantidos longe da teoria. Já aqueles que aprendem a teoria se mantêm longe do trabalho manual, criando uma divisão que não é propícia nem para o desenvolvimento científico nem para o desenvolvimento de uma atitude científica.

A maneira como a ciência e a tecnologia são praticadas sob o neoliberalismo anda de mãos dadas com atitudes sociais não científicas e com a ideologia propagada pela direita indiana. O ensino e a prática da ciência de forma descentralizada, experimental, observacional, prática e baseada em pesquisas são fundamentais para cultivar um pensamento científico entre as crianças. A concepção de ciência do Movimento da Ciência Popular não significa apenas investigar os fenômenos naturais, mas também compreender e analisar as relações sociais que deles subjazem.

Com base nesse entendimento, o Movimento da Ciência Popular criou um modelo facilmente replicável para o ensino de ciências por meio de seus Festivais Alegria em Aprender. Embora o Estado neoliberal seja obrigado – até certo ponto – a adotar esses modelos, eles não podem ser implementados em escala massiva enquanto a direita estiver no poder.

A singularidade do Movimento da Ciência Popular é que ele opera nos espaços disponíveis devido às brechas do capitalismo, diferenciando-o de outras organizações classistas que, por definição, confrontam o capital com força total. A abordagem do Movimento da Ciência Popular permite que o projeto socialista conteste a hegemonia cultural do neoliberalismo e a toxicidade social da direita, construindo novos espaços para a consciência científica, racional e humana.


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Notas

1 Para saber mais sobre essa mudança neoliberal, ver: Narayanan, Dhar, 2022; Chakraborty, Ambedkar, 2022.

2 Os fundos públicos agora também estão sendo transferidos para escolas particulares. O ministro-chefe do programa Equal Education Relief, Assistance, and Grant [Auxílio, assistência e subsídio para educação igualitária] (CHEERAG), de Haryana, por exemplo, está incentivando os pais a mandarem seus filhos para escolas particulares, para as quais o governo arcará com um custo mínimo. Ao mesmo tempo, o governo introduziu taxas em suas próprias escolas. Para saber mais, ver: Siwach, 2022.

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Referências bibliográficas

Chakraborty, Satarupa; Ambedkar, Pindiga (eds.). Students Won’t Be Quiet. New Delhi: LeftWord Books, 2022.

Isaac, T. M. Thomas; Ekbal, B. Science for Social Revolution. The Experience of Kerala Sastra Sahitya Parishat. Trichur: KSSP, 1988.

Ministry of Law and Justice, Government of India. The Constitution of India, 26 jan. 1950. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/3ae6b5e20.html.

Narayanan, Nitheesh; Dhar, Dipsita (eds.). Education or Exclusion? The Plight of Indian Students. New Delhi: LeftWord Books, 2022.

Parameswaran, M. P. (ed.). Science for Social Revolution. Thrissur: KSSP, 2013.

Purkayastha, Prabir; Indranil; Chintan, Richa (ed.), Political Journeys in Health. Essays by and for Amit Sengupta. New Delhi: LeftWord Books, 2021.

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Shah, Navinchandra R. ‘Literacy Rate in India’, International Journal of Research in All Subjects in Multi Languages 1, n. 7, out.  2013. Disponível em: https://www.raijmr.com/ijrsml/wp-content/uploads/2017/11/IJRSML_2013_vol01_issue_07_04.pdf.

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Siwach, Satyapal. ‘Haryana Teachers Protest Against CHEERAG’, Peoples Democracy, 7 ago. 2022. Disponível em: https://peoplesdemocracy.in/2022/0807_pd/haryana-teachers-protest-against-cheerag.

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